quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A linha de frente e um combate contraproducente


Na prestação de serviços, é chamada de “linha de frente” a equipe de funcionários de atendimento ao cliente. O termo, imortalizado no clássico “A Hora da Verdade”, de Jan Carlzon, tem origem militar: a linha de frente era composta por soldados entrincheirados, ou tropas de reconhecimento de terreno que estavam adiantadas: logo, mais vulneráveis e propensas aos ataques inimigos. (Escrevo com verbos no passado porque valer-se das linhas de frente é uma estratégia militar defasada).

Curiosamente, nas organizações, a linha de frente, trabalhando sem estratégia, também combate: funcionários consideram seu cliente um inimigo. No discurso, o atendente declama: “Quem paga o nosso salário não é o patrão, é o cliente!” Mas na prática, como já detectava Theodore Levitt há meio século, “O freguês é alguém que está ‘lá adiante’ e que, mediante um golpe bem dado, pode abrir mão de seu dinheirinho”.

E como na guerra, os nossos soldados da linha de frente (frentista, balconista, garçom, caixa) travam batalhas diárias marcadas pela falta de aptidão e pelo despreparo. Nesse momento conflituoso, em frente ao cliente, o atendimento adquire contornos emocionais, pessoais. O que deveria ser um contato mediado pelo profissionalismo e pelo decoro acaba em improviso, desconfiança e medo.

Sabemos que as empresas herdaram muito do modelo militar, desde a hierarquia até a estratégia competitiva. Poderiam emular outro procedimento do exército: o rigoroso e detalhado processo de alistamento e recrutamento. Desse modo nossa linha de frente poderia servir o (ao) cliente da mesma maneira aplicada com que os milicos servem à pátria.    

sábado, 26 de novembro de 2011

Sobre valor e custos envolvidos

É difícil estabelecer o preço de um serviço. Um bem de consumo possui custos bem definidos de manufatura, produção, fornecedores, distribuição. Preço de produto só é mais complicado quando adquire função estratégica (posicionamento, concorrência, share, etc.) Mas e quanto vale a mão-de-obra?
Em primeiro lugar, é preciso listar custos fixos e variáveis. Os custos fixos são o aluguel, os salários, os juros, os tributos que você invariavelmente paga. Melhor definição de custo fixo: aquilo que você paga todo mês, não importa a receita. O custo variável, em serviços, é inesperado ou eventual.
O grande problema é calcular o quanto cobrar pelo serviço, pela mão-de-obra. Estará envolvido nessa conta um fator subjetivo: o valor. E o valor, destaque-se, não tem relação direta com os custos. O valor nasce da percepção do cliente. Uma maneira simples para explicar o que é valor: são os benefícios que o cliente vê, menos os custos que ele terá.
Mas não é só isso. E quais são os custos para o cliente? Nessa resposta muitos se perdem. Existe o custo financeiro (preço a ser pago pelo serviço). Mas também existe o custo físico (procura, fila, espera), o custo psicológico (será que é bom? vale a pena?) e o custo sensorial (qualquer coisa que afete um dos cinco sentidos do cliente, como acontece num ambiente desagradável).
Chegamos lá: definir o valor de um serviço não pode levar em conta apenas fatores financeiros. A entrega, a disponibilidade, a exclusividade, a personalização, a credibilidade, inúmeros são os aspectos que poderão reduzir custos não-financeiros do cliente e agregar valor. Se o cliente enxergar valor, ele não questionará o preço, mas se ele não perceber o valor, só perceberá o preço. E questionará.
Agregar valor, em serviços, é aprimorar processos. E esse processo precisa ser comunicado ao cliente. Talvez aqui esteja o ponto mais simples, mais importante e também o mais ignorado: o bom prestador de serviços educa, ensina. Ele detalha ao cliente o que será feito, como será feito, o tempo necessário, toda a complexidade da prestação. Na nossa cultura o prestador de serviços não tem esse costume de explicar o que está fazendo. Esse simples procedimento didático, por si só, já seria uma redução de custo para o cliente.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Sobre a necessidade do Marketing

Toda empresa busca (ou deveria buscar) a sintonia com seu cliente. Saber o que ele quer, o que ele pensa e deseja. Encontrar pistas e evidências que contribuam no desenvolvimento de produtos e serviços. É preciso investigar se as pessoas vão gostar de determinada idéia: só assim é viável torná-la um projeto.
Como conseguir isso? O marketing utiliza consagradas ferramentas, todas de eficiência comprovada. As mais comuns são as pesquisas e suas variáveis: focus group, pesquisa de mercado, pesquisa etnográfica, pesquisa de opinião, estatísticas, enfim, dados que possam ser ordenados de maneira lógica, apontando rumos e tendências.
Ao longo da história, porém, certos homens ignoram esses instrumentos e preferem acreditar em sua intuição, em seus insights. Henry Ford é um bom exemplo: ele justificava a invenção do automóvel alegando que, se perguntasse às pessoas da época o que elas queriam, ouviria que sonhavam com cavalos mais rápidos.
O recém falecido Steve Jobs foi o exemplo moderno de empreendedor que praticamente ignorou o marketing. Ou, no mínimo, dispensou as ferramentas de pesquisa durante a criação de produtos. Ele sabia o que era bom, bonito, eficiente, e que naturalmente faria sucesso. Não era necessário ouvir as pessoas. Arrisco dizer que nem seria prudente ouvi-las.
Muitos consideram essa capacidade um dom inato, digno dos grandes gênios inventores. Quantos mortais faliram e quantos fracassarão ao arriscar um palpite, ao apostar tudo numa idéia. Julgam-se desbravadores, visionários, mas quando incorporam a grandiloqüência se tornam lunáticos despercebidos. Consideram-se pobres artistas incompreendidos pelo público. Mas não é nada disso: simplesmente não era bem aquilo que o povo queria comprar.
Ou seja: para a maioria, o marketing sempre será necessário. O marketing representa, dessa maneira, uma espécie de âncora que mantém a invenção próxima da realidade e dos sentidos. O marketing ajuda a intuição a se manter racional; e quando finalmente materializada, torna-se a inovação propriamente dita. Inovar seria, em último caso, utilizar o marketing na concepção, mas arriscar-se além dos seus limites, ignorando paradigmas em busca do progresso.
Mas poucos se arriscam. Apenas aqueles que possuem a capacidade de enxergar além das tendências, dos comportamentos de manada e das pesquisas. E, acima de tudo, possuem a coragem de investir no que acreditam. Steve Jobs, quando se referia a esse assunto, falava sobre a necessidade de seguir o coração.
Talvez essa seja a diferença entre os gênios inventores e os meros mortais. O coração deles se manifesta de tal maneira que pode até ser ouvido. Nos demais, parece passar a vida toda batendo calado.  

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A contribuição de Steve Jobs e nossas justificativas

Minha meia dúzia de leitores fiéis percebeu minha ausência. Ou pelos menos a ausência das minhas idéias e opiniões afobadas. É um sintoma do nosso tempo: escrevemos errado em linhas milimetricamente certas.
E hoje é um bom dia para se falar sobre isso: morreu ontem (ontem então seria um ótimo dia) Steve Jobs. Por causa dele, em última instância, abandonei o caderno e o lápis para encarar o cursor solitário no meio da tela em branco. Uma folha de caderno em branco é uma paisagem passiva. O cursor, piscando, parece dizer: e aí, não pensou em nada ainda? Estou aqui aguardando. Piscando no mesmo ritmo dos dois pontos que separam as horas dos minutos no rádio-relógio de antanho.
Escrever, na era moderna, se tornou mais complicado. Primeiro: escrevemos para os outros, para todos os outros estranhos, anônimos, indigentes. Segundo: o método da escrita é padronizado. Os manuscritos sumiram: sinto um prazer saudoso ao anotar a lista de compras do mercado. As letras são caprichadas, desenhadas, rabiscadas numa espécie de floreio. O papel e a caneta definitivamente oferecem mais liberdade criativa ao portador (nunca respeite um poeta que escreve seus versos no Word).
Mas não vou culpar o computador de Steve Jobs pela minha ineficiência intelectual. Estou sendo egoísta, pois ele nos facilitou a vida. Ele sim foi um mestre com o papel e o lápis na mão, tanto é que materializou suas idéias em epidemias de consumo. Admiro-o. Meu problema é outro, e exige outras comparações.
O texto que não sai é um animal subitamente arredio, digamos. Teimoso, ele range os dentes para o próprio dono. Você tenta domá-lo mas ele resiste. A idéia confusa vem, assim, de uma espécie de insegurança. É o senhor que se aventura sobre o corpo nu da jovem amante. Ele de antemão desconfia e teme que não vai conseguir, mas insiste e, quando acontece, já nem se decepciona. Mal se justifica.
Este é o digitador resignado. Ele lê uma revista, assiste um filme, esconde lá no fundo a desilusão por não produzir nada. Finalmente ele casa, ele procria, ele trabalha bastante para esquecer a obrigação de escrever. E todo escritor sabe que essa obrigação existe, mesmo que ninguém esteja mandando ele fazer coisa alguma. A simples vida simples não parece ser suficiente.
Eis a maior contribuição de Steve Jobs para a humanidade: enterrar lá no fundo da lembrança a necessidade de criar algo, de produzir. Ele já fez o que precisamos. Os bem sucedidos, os inovadores, doravante, são os que sabem utilizar a plataforma criada por Jobs.
Sobreviveremos. Sobreviveremos pacatamente e sem remorsos. E a jovem amante vai ouvir, sinceramente, que isso nunca havia acontecido.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O bom vendedor e a boa venda

Sou constantemente questionado sobre como vender mais, ou o que fazer para ser um bom vendedor. Um exemplo: há alguns dias, estive numa empresa, prestadora de serviços, que cobrava de seus funcionários a venda de, pelo menos, um determinado produto por dia. Se o funcionário não vendesse, tinha o valor do produto descontado do seu benefício. Os funcionários, obviamente, estavam insatisfeitos com a meta. Mas também ouvi queixas da proprietária: para ela, seus funcionários não sabiam vender. Ela buscava treinamento, inspiração, qualquer coisa para transformá-los em vendedores “melhores”.


Contextualizando: essa empresa está localizada numa cidade pequena de região litorânea. Nos 3 ou 4 meses quentes do ano, o movimento de clientes quadruplica. No restante do ano, o movimento é bem menor, previsível e constante.


Nos meses quentes é até compreensível que a empresa seja orientada para vendas, já que aquele cliente é, ou pelo menos a grande maioria, sazonal (já pensou, leitor, se, numa empresa, prestadora de serviços, que estipula metas de vendas diárias, eu propusesse que cativassem o turista?). Mas obrigatoriamente, no restante do ano, é fundamental conquistar os nativos. É preciso criar um relacionamento de longo prazo. Esses mesmos nativos, além de sustentarem a empresa nos meses frios, recomendarão a empresa aos turistas na temporada, já que eles atendem os mesmos clientes em hotéis, bares, restaurantes, cabarés, etc.


Os funcionários não possuem alternativa: precisam bater a meta diária de um frasco do tal produto. Com isso, praticam uma divulgação desesperada, sem procurar saber se o cliente realmente precisa daquilo. Ele pode até comprar, mas provavelmente não fará questão de retornar. Não sei se o leitor concorda, mas ele pensará algo assim: “Lá não gosto de ir. Os vendedores são muito chatos.” E, o mais grave, vai replicar essa idéia entre parentes, amigos e, claro, turistas.


Percebemos assim que a política de vendas de uma empresa é algo que precisa fazer parte do planejamento estratégico, dos objetivos da organização. E no caso acima descrito, encontramos um paradoxo: quanto “melhor” for o vendedor, mais a empresa perderá clientes. Porque aquele que a proprietária considera bom vendedor, é o mesmo que ignora necessidades e faz com que o cliente compre por insistência. Ele traz um lucro diário próximo da insignificância enquanto repele o tangível mais valioso que um prestador de serviços pode ter: seu cliente fiel.


Sugeri que a meta fosse extinta, ou, vá lá, que seja mantida apenas no verão. Mas acredito que não fui ouvido. Para o consultor, enfim, não há dilemas e não existe paradoxo: o problema dessa empresa não está nos vendedores, mas na maneira de vender. 




*Texto publicado na Vitrine Empresarial de Julho/Agosto 2011.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Serviços, tangíveis e as rodoviárias na Copa

Os aeroportos precisam se popularizar, porque a classe C quer voar. Beleza, orientação para o cliente. Mas os aeroportos mantêm costumes burgueses incompatíveis com suas ambições.
Um exemplo: há alguns dias, no aeroporto de Porto Alegre, paguei R$ 6,00 por uma latinha de Brahma. Em respeito às senhoras que me lêem não vou descrever aqui a última vez que em que eu paguei tão caro por uma Brahma.
E as rodoviárias? Que bela maneira de não sentir saudades do passado, já que estas arcaicas estações são os mesmos pardieiros de antanho. Ao turista desavisado os aspectos tangíveis do serviço dizem tudo: banheiros imundos, mendigos, acomodações precárias, comida ruim, etc. Vendo isso, já se desconfia que o ônibus é ruim também, atrasa e o motorista é xucro.
Ambos, aeroporto e rodoviária, nos prestam serviços. Nos aeroportos percebemos uma vaga orientação por servir: as vezes somos surpreendidos com um discreto sorriso no rosto de algum funcionário. Até conseguimos certa atenção, alguma informação. Já nas rodoviárias, parece que tudo que nos fazem é um complicado favor. Imploramos ao balconista que tenha a bondade de nos informar os horários dos ônibus que vão atrasar e não chegarão ao destino no horário.  
Só um parênteses: será que adiantaria treinar um motorista de ônibus, um cobrador, um vendedor de passagem para atender bem? Talvez ajude. Talvez, porque isso envolve algo maior, que insistimos sempre: treinar só resolve se você selecionou um funcionário a partir de suas competências, e se a empresa tem algo a oferecer para que este funcionário tenha motivações para trabalhar conforme orientado. Adiante.
Voltamos a eles: nossos aeroportos, como se sabe, trabalham além de sua capacidade. Consequência: já imitam os piores defeitos das rodoviárias: atrasos, descaso com passageiros, falta de informação. Não é por nada que são a maior preocupação para a Copa de 2014, preocupação maior que os próprios estádios. Mas e as rodoviárias? Alguém já ouviu falar nas obras de melhoria das estações rodoviárias para a Copa de 2014? Ou elas não serão usadas durante o torneio? Já pensou o pesadelo do turista (desavisado) que ficar em um hotel nas redondezas de qualquer rodoviária do Brasil?
- Toc toc!
- Who´s there?
- Pograma?
Não bastam os problemas atuais: no próximo texto eu pretendo falar sobre estações de transporte público ferroviário e aquaviário no Brasil. Mas, temo, este texto vai ter que esperar mais algumas décadas. Não duvidem que, se existissem, as estações ferroviárias seriam como nos desenhos do pica-pau: assombradas por pistoleiros e, quando o trem passa, deixa o saco dos correios pendurado num poste.
E as estações aquaviárias, como seriam? Banheiros fluviais. É só o que eu vislumbro.

domingo, 1 de maio de 2011

Um breve espaço entre todos nós

Você está num ônibus estranho que passa por caminhos estranhos. A velha no banco de trás parece estar rezando. Você pensa na vida e sente uma certa inveja: também queria acreditar em alguma coisa. Mas então você olha para trás e o que vê é uma aluna do primário lendo um livro da coleção Vagalume em voz alta. Quando foi que o tempo passou e a adorável criança virou repugnante senhora?

No banco ao lado um rapaz está sem camisa, porque o gesso lhe envolve todo o tronco e um dos ombros. De que construção fingiu cair quando o que o empurrou foi a lembrança da traição da mulher ingrata? Em que meio-fio fingiu tropeçar ao se atirar em frente ao ônibus da Viação Sertaneja? Não fossem os desenhos das nuvens e a doce ressaca esse caipira estropiado me irritaria.

Atrás dele uma senhora menos feia que a primeira me observa. Assim que largo a revista entediado ela pergunta se pode ler. Fecho os olhos e me imagino negando, alegando que a revista é minha e que, terminado o pacote de Doritos, retomarei a leitura. Mas só penso nisso após lhe alcançar a revista com um sorriso espontâneo no rosto. Meu lado gentil predomina também aqui nestes sertões distantes. Ela só observa as imagens, folheando a revista de modo displiscente. Mocinha impaciente que, de tanto esperar, enfim tornou-se a simpática analfabeta idosa.

O ônibus para em triste vilarejo. Vejo vários caipiras curiosos olhando para alguma coisa. Eu, curioso também, olho para eles. Uma criança suja , um gordinho, um magro e mais um que, assim à distância, aparenta ser mongolóide. O outros milhares. O ônibus anda e percebo que o que eles olhavam era um acidente. Fico chateado por ter perdido a cena que eu teria facilmente visto olhando para o outro lado do ônibus, o lado em que estão o caipira e a mulher que emprestei a revista. Ouço sirenes de bombeiros, vejo mais e mais curiosos indo embora com as árvores pela janela. Afinal, quem morreu? Dessa vez, pelo menos, não fui eu.

No canto mais sujo de uma rodoviária uma menininha encantadora é reprimida pela mãe com violento safanão que por Deus doeu em mim. Ela poderia dominar o mundo. Ela poderia provocar o suicídio de inúmeros caipiras rejeitados e engessados. Porém ela, os pais e duas irmãs vendem porcarias aos passageiros. Vontade de ir lá buscá-la e levá-la embora, mas quem garante minhas boas intenções? Medo de ser confundido com o velho pedófilo que está lá perguntando à minha menininha quanto custa o boné, a carteira, o balaio de bugre.
Mas assim que o ônibus parte não me preocupo mais com ela: sei que logo o velho pedófilo irá embora, porque também logo logo a adorável mocinha será apenas a velha louca da rodoviária.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Como conheci Moacyr Scliar

Tornei-me leitor de Moacyr Scliar por acaso. Alguém me emprestou um de seus livros. Era um livro de contos, e na época achei bastante interessante. Depois disso li mais alguns, e eu até que gostava: eram daqueles textos que prendem o incauto leitor.
Um tempo depois, já na capital, fui a um evento que reuniu Moacyr Scliar e Carlos Heitor Cony. Ambos ostentando aquela arrogância que admiramos, bem característica dos escritores relativamente famosos. Scliar demonstrava uma pressa irritante. Queria antecipar o final do encontro de todo jeito. Respondia displicentemente perguntas de universitários afobados. Eu, e alegro-me com esta lembrança, permaneci calado.
“Quase-memória” foi um livro instigante na minha mocidade. “Romance sem palavras” permanece até hoje como um dos melhores finais de narrativa que já encontrei. Cony, enfim, marcou-me. E do Scliar o que ficou na lembrança? Um conto sem sentido que ele comentou durante o encontro.
Ele não lembrava exatamente da história. Mas era uma vez um cego que se gabava por conhecer qualquer veiculo a partir do ronco do motor. Mas errava todos. Quer dizer, errava porque o seu interlocutor lhe dizia que o carro não correspondia ao qual ele falava. Scliar concluiu lembrando que, certa vez, um estudante questionou-lhe se talvez não fosse o interlocutor que mentia, enquanto o cego acertava os palpites. Logo chego à intenção de Scliar com este exemplo.
Fiquei inquieto: eu lembrava bem deste conto, mais que o próprio escritor. Estava lá naquele livrinho emprestado da adolescência. Assim que acabou o encontro eu entrei na fila de autógrafos. Primeiro fui até o Cony. Cumprimentei-lhe, e ele estranhou que eu não tinha em mãos nenhum exemplar para que ele assinasse. Para este caipira, naquela época, aquele cumprimento representava bastante.
Depois fui ao final da fila de autógrafos do Scliar. Com as mãos no bolso aguardei paciente. Eu fui o ultimo, e quando ele me recebeu, estendi-lhe a mão, e imediatamente lembrei do conto que ele citou. E provei que o leitor que ele citou estava errado. Scliar deixou claro no texto que o cego não sabia do que falava. Scliar desconversou, visivelmente irritado por eu ter estragado seu exemplo sobre as diferentes visões que uma narrativa pode ter. Com aquele exemplo ele queria demonstrar como as vezes o próprio escritor não percebe interpretações diferentes da sua história.
Scliar achava interessante essa possibilidade de cada leitor interpretar um texto de determinada maneira. Pode ser, mas as vezes isso é resultado da preguiça. Falta ao escriba o labor da edição, da revisão; sobra afobação. E o que se considera interpretação múltipla pode ser apenas um texto afoito, carente de coesão. A boa prosa sempre foi exata, precisa.
Consegui estragar-lhe a noite ou não? Na época não foi minha intenção, queria que ele reconhecesse minha memória, reconhecesse em mim um bom leitor. Não deu muito certo, mas fui embora estranhamente contente. Queria apenas chegar em casa e contar para minha irmã o que aconteceu. O que hoje é uma lembrança apagada na época era algo extraordinário: argumentar com um escritor que eu admirava.
E hoje, alguns dias após a morte de Scliar, é o que tenho a contar. Li aqui e ali que foi reconhecido como grande escritor. Mas nunca mais li nada que ele escreveu, já que há tempos sou escravo de releituras exaustivas de Dalton Trevisan. Hoje entendo Scliar: se um leitor viesse comentar comigo entrelinhas, eu também desconversaria, olharia para ele com o mesmo desdém, e desejaria estar num lugar mais agradável, com bebidas e leitoras que apreciassem a arte das infinitas interpretações do texto afobado.

sábado, 26 de março de 2011

O filho guerreiro e o pai empreendedor

Há alguns dias um aluno me perguntou o que eu achava necessário para uma pessoa ser um empreendedor. Se essa pergunta fosse feita ano passado, eu desandaria a falar o que todos falam: o empreendedor é destemido, ele adora desafios, assume riscos, entre outras características tão vagas quanto essas palavras (e repetir palavras à exaustão é a maneira mais fácil de torná-las sem sentido).

Voltando ao tema: por que eu respondo hoje esta pergunta de maneira diferente? Explico.

Meu primo se chamava Gustavo Drehmer. Guto, para os íntimos. Ele faleceu com 27 anos, num acidente de automóvel no início de 2011. Gustavo foi um batalhador: teve hepatite, transplantou o fígado e enfrentava diariamente as conseqüências da sua condição. Mas estava bem, e tudo indicava que teria uma vida saudável e longa. Até que um caminhão velho e desgovernado invadiu sua pista.

Ficamos desolados. Ninguém conseguia acreditar como algo assim poderia acontecer a uma família que lutara tanto. Sou próximo aos meus tios, pais do Guto. Alguns dias depois do acidente consegui tirar um tempo para visitá-los.

Conversamos um pouco sobre a fatalidade e falamos algumas banalidades. Eu extremamente preocupado com o decoro que o momento exigia: apenas ouvia, concordava, falava o mínimo possível.

Meu tio é empresário e empreendedor (diferenças em um próximo texto). Possui uma madeireira que fabrica cabos para diversas ferramentas. O acidente aconteceu num domingo. Na segunda a fábrica não abriu. Na terça meu tio abriu as portas e ligou as máquinas. E explicou-me o motivo: "Não posso esquecer que tenho dez funcionários. Queira ou não, sou responsável por dez famílias".

Hoje, se me perguntam o que é um empreendedor, conto essa história. Falam do empreendedor como se fosse o super-homem saído das páginas de Nietzsche. Não há dúvidas que é importante que essa pessoa tenha certas qualidades para que seu negócio prospere. É importante sim. Mas fundamental é que ele seja um ser humano exemplar. Como o meu tio.

*Publicado originalmente na revista "O Verbo" de março de 2011.

terça-feira, 15 de março de 2011

Em busca do talento perdido

No último artigo, falamos sobre a necessidade de colocar a pessoa certa no atendimento aos clientes. Isso é vital para toda a empresa que busca diferenciação, tanto na prestação do serviço em si, como na estratégia de agregar valor aos produtos.

Falamos da importância do perfil deste funcionário da linha de frente. Mas paramos num ponto: a dificuldade que as empresas encontram para selecionar pessoas que se encaixem no perfil necessário para o atendimento e relacionamento com o cliente.

Acontece sempre: a empresa acredita que qualquer um pode ser frentista, caixa, padeiro, açougueiro, garçom, recepcionista e afins. Essas profissões podem não exigir currículo. Mas exigem pessoas simpáticas, tolerantes, com jogo de cintura. Exigem pessoas que, ao servir o cliente, sintam alegria e realização pessoal.

Conversava eu há alguns dias com o proprietário de um posto de combustíveis de Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Ele lamentou a dificuldade que enfrenta para reter bons funcionários: estes são constantemente seduzidos por propostas mais atraentes. E o posto, então, precisa contratar pessoas novas.

E aqui reside o problema: esse processo seletivo não acontece como deveria. Acredita-se que, por exemplo, qualquer um pode ser frentista. As conseqüências são dramáticas, pois a empresa exige do funcionário uma postura que ele jamais adotará. E então ocorrem desentendimentos, mau atendimento, acidentes de trabalho, e uma grande rotatividade de funcionários.

As empresas precisam reconhecer sua responsabilidade na contratação. Como fazer isso em pequenos negócios, que nem possuem um profissional de recursos humanos? Nesses casos é a gerência que precisa ter uma mínima noção de gestão de pessoas, para recrutar e selecionar aqueles que se enquadram no perfil que a empresa procura.  

A perspectiva é boa para o funcionário: aquele que se destaca é percebido, e as oportunidades de crescimento aparecem. E o que a empresa precisa fazer para retê-los e evitar a debandada de talentos? Nosso próximo assunto.

*Publicado originalmente no jornal Correio Curitibano (março 2011).

Orientados para servir

O caro leitor deve ter ouvido algo assim ultimamente: “Hoje só não trabalha quem não quer.”
Em termos, podemos entender esse raciocínio. Especialmente nos últimos anos, com a economia brasileira em expansão. Se o leitor observar a vitrine das lojas perceberá vários anúncios do tipo “precisa-se vendedor”, ou “admite-se balconista”.
Num primeiro momento pode parecer que, incrivelmente, contamos com mais posições de trabalho do que desempregados. Mas obviamente não é verdade. O que falta é mão de obra qualificada. Mas é necessário mão de obra qualificada para vender, atender, recepcionar, informar?
A resposta é sim! Claro que sim! Não falamos aqui de graduação, especialização e demais cursos superiores. O problema é outro: encontrar pessoas que sintam prazer e encontrem realização pessoal ao servir seu cliente.
Por isso, a melhor explicação para a falta de funcionários no mercado de serviços é a falta de gente com o perfil adequado. Não são todos que possuem essa alegria de servir. De estender o tapete. De ser solícito. De oferecer um simples sorriso.
Sempre falo em meus treinamentos de atendimento: se você não gosta de lidar com pessoas, você está no lugar errado. Seu lugar é na produção, e não na prestação de serviços. A questão é perceber quem realmente está apto a ser a cara da empresa, a linha de frente.
Daí a importância do recrutamento e da seleção de pessoas com perfil adequado para o atendimento a clientes. Não apenas a seleção, mas também a capacitação e a retenção desses talentos. E aqui encontramos a explicação para essas vagas ociosas: a rotatividade de funcionários, que não possuem o perfil de prestação de serviço. Ou o contrário: o funcionário possui o perfil adequado, mas não é orientado, valorizado e, consequentemente, pede as contas.
Percebemos assim que atender bem está no perfil de cada um, é uma habilidade a ser trabalhada, desenvolvida. Mas para isso precisamos de um funcionário motivado. E assim encontramos os principais responsáveis pela falta de mão de obra: as próprias empresas. Nosso próximo assunto.
*Publicado originalmente no jornal Correio Curitibano (janeiro 2011) e revista Vitrine Empresarial (janeiro 2011).