domingo, 1 de maio de 2011

Um breve espaço entre todos nós

Você está num ônibus estranho que passa por caminhos estranhos. A velha no banco de trás parece estar rezando. Você pensa na vida e sente uma certa inveja: também queria acreditar em alguma coisa. Mas então você olha para trás e o que vê é uma aluna do primário lendo um livro da coleção Vagalume em voz alta. Quando foi que o tempo passou e a adorável criança virou repugnante senhora?

No banco ao lado um rapaz está sem camisa, porque o gesso lhe envolve todo o tronco e um dos ombros. De que construção fingiu cair quando o que o empurrou foi a lembrança da traição da mulher ingrata? Em que meio-fio fingiu tropeçar ao se atirar em frente ao ônibus da Viação Sertaneja? Não fossem os desenhos das nuvens e a doce ressaca esse caipira estropiado me irritaria.

Atrás dele uma senhora menos feia que a primeira me observa. Assim que largo a revista entediado ela pergunta se pode ler. Fecho os olhos e me imagino negando, alegando que a revista é minha e que, terminado o pacote de Doritos, retomarei a leitura. Mas só penso nisso após lhe alcançar a revista com um sorriso espontâneo no rosto. Meu lado gentil predomina também aqui nestes sertões distantes. Ela só observa as imagens, folheando a revista de modo displiscente. Mocinha impaciente que, de tanto esperar, enfim tornou-se a simpática analfabeta idosa.

O ônibus para em triste vilarejo. Vejo vários caipiras curiosos olhando para alguma coisa. Eu, curioso também, olho para eles. Uma criança suja , um gordinho, um magro e mais um que, assim à distância, aparenta ser mongolóide. O outros milhares. O ônibus anda e percebo que o que eles olhavam era um acidente. Fico chateado por ter perdido a cena que eu teria facilmente visto olhando para o outro lado do ônibus, o lado em que estão o caipira e a mulher que emprestei a revista. Ouço sirenes de bombeiros, vejo mais e mais curiosos indo embora com as árvores pela janela. Afinal, quem morreu? Dessa vez, pelo menos, não fui eu.

No canto mais sujo de uma rodoviária uma menininha encantadora é reprimida pela mãe com violento safanão que por Deus doeu em mim. Ela poderia dominar o mundo. Ela poderia provocar o suicídio de inúmeros caipiras rejeitados e engessados. Porém ela, os pais e duas irmãs vendem porcarias aos passageiros. Vontade de ir lá buscá-la e levá-la embora, mas quem garante minhas boas intenções? Medo de ser confundido com o velho pedófilo que está lá perguntando à minha menininha quanto custa o boné, a carteira, o balaio de bugre.
Mas assim que o ônibus parte não me preocupo mais com ela: sei que logo o velho pedófilo irá embora, porque também logo logo a adorável mocinha será apenas a velha louca da rodoviária.