Você anda pela rua e vê dois cachorros grudados, pacientes, cada um olhando numa direção. Coisa que desde a longínqua infância você não via. Onde estão as crianças tentando separá-los com paulada e água fria?
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Você vê crianças correndo (menos, claro, próximo aos cachorros amantes). Elas são sujas, magras e adoráveis. Você até pegaria uma no colo, mas teme ser confundido com o velho pedófilo que, por detrás da cortina, observa os meninos jogando futebol.
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Você acorda no começo da noite, após poucos minutos de sono. Uma sensação ruim, um mal estar sem sentido, e você repete: calma rapazinho, a angústia do Graciliano era apenas o nó da gravata apertado. A sua é só a ressaca. Mas você pára para pensar e, opa, nem bebeu ontem.
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Buscando amparo para a solidão você tenta reparar numa camareira. Procura um atrativo, uma curva ainda rija, alguma brancura proeminente, mas o que vê é um bicho qualquer implorando gratidão, igual a você.
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Você passa por uma igreja de crentes, é segunda-feira a noite e uma dúzia de fiéis, no máximo, acompanha o louvor, que passa numa televisão, lembrando um karaokê. Você apressa o passo, espiando o recinto de soslaio. Um pouco a frente, um velho resmunga na varanda escura e você se assusta. Dormir, agora, só de luz acesa.
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Você acorda então num dia ordinário e, no banho, olhando pela janelinha, vê um tucano deslumbrante planando. Ele muda toda a paisagem e, logo você, que nunca reparou nessas coisas, solta um involuntário “olha!”. Depois disso até uma árvore é contemplada: olhando pra cima, rente ao tronco, o sol batendo nas folhas e criando um inédito jogo de luzes. Primeira vez também que você repara nisso e se admira por ter encontrado tamanha graça.
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Você vê então uma família fazendo um churrasco na varanda e você gostaria de ser convidado para estar ali, naquele momento. Logo você, bicho arredio. Um cachorro encantador aguarda paciente pelas sobras de carne e osso. Será que ele aceita um carinho enquanto come ou vai avançar?
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Você anda desbravando as calçadas sujas e, num vão, vê um mongolóide sentado numa cadeira de rodas, a cabeça estranhamente deitada de lado sobre uma mesa e encostada num rádio de pilhas, apreciando a música que toca a todo volume. Não sei se a iniciativa é dele ou se é sua mãe que faz isso para que ele se ocupe e pare de estorvar. Por quem és, afinal, Senhor?
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Você vê o de sempre. O que muda e aguça, aqui, tão longe, é a sua percepção. Pavorosamente clara, como a melodia que sai do rádio do mongolóide.
São Valério da Natividade, TO.