terça-feira, 8 de junho de 2010

Ícaro dos pés rachados

A cada voo, a mesma e primordial emoção. Você pensa e até ouve de terceiros: voar acostuma! E o pior é perceber esses senhores dormindo em plena decolagem! Ignoram o momento em que o homem, mais de uma centena de homens, decidem ir contra sua condição histórica e retirar os pés do chão. Eu, por outro lado, acompanho atento: embalou o suficiente para subir? As casas, prédios e morros já estão distantes ou ainda são barreiras a eventual fraqueza do motor? Quanto tempo, Senhor, até estabilizar e a aeromoça trazer meu miserável lanche? Conceda-me um sorriso?

Eu não acostumo. Eu não gosto de altura, prefiro o rés-do-chão. Prefiro a sujeira, os ratos e as imortais baratinhas. Relevo nuvens e o firmamento: são demais para mim, não admiro essas coisas que ficam além da compreensão. Prefiro os perigos do solo, da estrada e suas curvas, dos rios, da chuva fria, da negra deitada na relva do potreiro. Prefiro as picuinhas da carne, as intrigas, as maledicências de quem está aqui, com uma pedra sempre ao alcance da mão.

Mas vai, Ícaro dos pés rachados. Feche os olhos. Pense na vida. Lembre que, haja o que houver, em alguns minutos tudo estará acabado. E até (ou se) recomeçar, você tem alguns dias de pés sujos no chão. Dias não menos assustadores. Mas tudo bem, desde que estejamos aqui, sentados, deitados, de cócoras, de qualquer jeito. Com terra debaixo das unhas. Nossa querida terra.