terça-feira, 8 de junho de 2010

Exercitando Compaixão

Apesar do quarto novo e aconchegante, uma aranha foi preservada pela camareira relapsa. Imóvel à espreita, na quina sobre a porta do banheiro.

Hoje acordei e ao sair da cama quase pisei numa espécie estranha de inseto. Uma formiga com asas duras, do tamanho de uma mosca, ou um pouco maior. Nesse instante senti algo que sinto sempre que percebo uma aranha em sua teia: a vontade de servi-la.

Lancei a formiga-mosca e, na segunda tentativa, ela ficou presa nas teias. Imediatamente a aranha começou a envolvê-la numa espécie de casulo, do qual ela (a formiga-mosca) lutava incansavelmente para escapar. Acompanhei a disputa por alguns minutos, e como vi que a aranha em breve venceria, voltei para a cama.

Rolei por meia hora mas não dormi. Pensava em muita coisa, como de costume, mas em nenhum momento lembrei da disputa na teia, que fica num canto do quarto que não é visível da cama. Resignado, levantei, fui até o banheiro e olhei para cima: pasme, a formiga-mosca conseguiu escapar. Olhei para o chão e ela se arrastava, com um pedaço de teia preso em uma das patas. Compadecido, arranjei dois pequenos objetos e livrei-a das teias. Fiz com que ela subisse em um dos objetos, abri a janela e deixei que ela descesse. Lentamente, esmorecida, desapareceu.

*
Alguns minutos depois, no banho: pela pequena janela, vejo um morro, divido por uma cerca. Hoje, dois animais descansam sob uma arvore grande. Mas tanto hoje como também durante o banho de ontem, dois animais (parecem burros, jegues, mulas, dificilmente cavalos) ficam próximos, sob o sol das 11 horas.

Detalhe: um de cada lado da cerca. Ambos fazendo um movimento circular com o rabo, sem parar. Parece piegas, mesquinho, mas é a cena mais comovente que presencio em dias, talvez meses. Mais do que uma velha negra que vi há alguns dias: ela pescava onde o esgoto desembocava em um rio, em alguma cidade medonha do interior do Rio de Janeiro. Pois é, me sinto muito mais tocado pelo amor impossível dos eqüinos.

Creio que este relato perdeu seu rumo previsto. Desconfio também que este escriba não tenha um rumo definido. E por falar em rumos, Horácio, referindo-se às navegações, disse que o homem pode mudar de céus, mas não muda de espírito. É bem verdade. Mas creio que ele escreveu isso no aconchego do lar, e não no semi-aconchego de um hotel, onde moram aranhas e formigas-moscas. O espírito não muda, mas o aforismo ignora a avassaladora influência da distância e da saudade.  

Alegre, ES.