terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Feliz 2014 – ou nem tanto

Caro amigo,

Sei que não são interessantes essas mensagens padronizadas que enviamos (tudo bem, que EU envio) para todo mundo no Natal ou Ano-Novo. Culpa da tecnologia. Estou recebendo algumas, por exemplo, pelo celular. Hoje cedo o Banco do Brasil lembrou de mim. Ontem alguém que eu não sei quem é. Sou do tempo em que uma mensagem no celular era uma ocasião: aquela expectativa de que alguém especial lembrou de você. A banalização do conteúdo é um efeito colateral da tecnologia.

Eis então uma mensagem nova no seu Facebook, de alguém que provavelmente não é especial. Sinto muito. Mas de uma nova forma, a tecnologia também aproxima: não fosse o Facebook, é provável que eu não lembraria de você hoje. E você muito menos de mim. A tecnologia vai nos manter próximos em 2014 – mesmo sem ver, mesmo sem falar nada.

*

Além da tecnologia, outro detalhe me encanta e incomoda ao mesmo tempo no final de ano: aqueles planos que fazemos para o ano que vai começar (sempre escrevo sobre esse assunto no final do ano). Acreditamos que o eu do futuro será melhor, mais determinado, mais FELIZ (sublinhe essa palavra, amigo leitor) que o eu do presente. Criamos expectativas sobre nós mesmos! E não se tornar esse super-homem invariavelmente vai ser, ano após ano, frustrante.

Sou fã de um cara que escreve na Folha de São Paulo, o filósofo Luiz Felipe Pondé (compre, se possível, os livros “Contra um mundo melhor” e “Guia politicamente incorreto da filosofia”). Há alguns dias ele falava da contemporânea e avassaladora “mania de felicidade”. Engolimos tarjas-pretas e compartilhamos ensinamentos de autoajuda: vivemos a obrigação de uma vida feliz. Não ser feliz, hoje em dia, é considerada uma questão de incompetência: você que não estaria se esforçando o bastante. No entanto, lembra Pondé, a vida é precária. Caminhamos rente ao abismo, ou rumo a ele. Nosso destino, até onde se sabe, é trágico. Franz Kafka também dizia que esperança existe, mas não para nós.

Dessa forma, dizer que o seu objetivo é ser feliz é não saber aonde ir. É andar no escuro, apalpando paredes em busca de um interruptor que nunca existiu. Se a felicidade é subjetiva e baseada em realizações efêmeras, como então estabelece-la como meta de longo prazo? Se você quer ter metas, precisar definir coisas tangíveis e mensuráveis e então adotar métricas: seria uma quantia em dinheiro? Quantos quilos? Ou: com qual régua você está tentando medir felicidade?

Espero e sugiro que em 2014 você esqueça essa obrigação obsessiva de ser feliz (ou, mais melancólico ainda, “parecer feliz”), por mais nobre que o propósito seja. Essa subjetividade dos desejos e planos é contraproducente e vai resultar, invariavelmente, em frustração.

Resumindo essa mensagem de ano novo: ser feliz é um meio, não um fim. Prova disso, para encerrar 2013 e este texto, o poema “Renúncia”, de Manuel Bandeira:

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura.

A vida é vã como a sombra que passa.
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O Jeca Tatu moderno

Nelson Rodrigues inventou a expressão “complexo de vira-lata” para descrever o sentimento e, especialmente, o comportamento do brasileiro. Era a Copa de 1950 e o Brasil havia sido derrotado pela seleção uruguaia na final, em pleno estádio Maracanã. Na ocasião, Nelson Rodrigues escreveu que “o brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.” No futebol o Brasil superou o sentimento de inferioridade. Mas ele subiu as arquibancadas e se espalhou, do Oiapoque ao Chuí.

Nossos escritores do Romantismo Indianista, como José de Alencar, O Chato, decidiram inventar um herói nacional no século XIX: idealizaram um índio esbelto e sensível. Mas uns 30 e poucos anos antes da Copa de 1950, Monteiro Lobato descreveu um merecido anti-heroi para a nação: Jeca Tatu. O criador do Sítio do Pica-pau Amarelo resolveu detalhar o caipira brasileiro (não vou citar o termo originalmente usado pelo autor para fugir da patrulha politicamente correta) como um “parasita da terra” e “inadaptável à civilização”. Monteiro Lobato teve a ousadia de culpar o caipira pela sua própria miséria, quando deveria, segundo a opinião pública da época, culpar a herança maldita dos portugueses e o descaso do novo governo republicano. O escritor, achincalhado pela crítica, desculpou-se pelo desabafo – mas o estrago, num bom e esclarecedor sentido, estava feito.

Eis a consequência do complexo de vira-latas: a suposta superioridade alheia é a desculpa para as derrotas. Estamos acostumados a justificar nossos fracassos culpando alguém. Monteiro Lobato ouvia que o Brasil era pobre porque foi explorado pelos portugueses. Nós crescemos ouvindo a mesma coisa, só mudou o algoz: os Estados Unidos. Uma justificativa confortável para o subdesenvolvido.

Nas empresas o sentimento é semelhante. O empresário não vai bem por culpa do funcionário, do governo, do cliente. O funcionário não vai bem por culpa do chefe, dos colegas, das oportunidades que alguém deveria ter lhe oferecido mas que foram negadas. Ou foi ele que esqueceu de pedir?


Eis o Jeca Tatu moderno com complexo de vira-lata: “uma vida inteira que podia ter sido e não foi”. E ele tem certeza que a culpa não foi dele.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Palavras de vago sentido

O Dicionário Oxford, o mais completo da língua inglesa, elegeu a palavra “selfie” como a palavra do ano. O termo significa aquele autorretrato tirado com o celular e invariavelmente publicado em redes sociais. A pessoa estica o braço e aponta a câmera para si mesma. Ou então vai até o banheiro e tira a foto do espelho.

Já utilizei este espaço para falar sobre como o fim do filme fotográfico banalizou a fotografia. Um retrato era uma ocasião. As pessoas faziam pose (e então nasceu o verbo – não confundir com “pousar”) para sair bem na foto, e aguardavam a surpresa da imagem na revelação do filme. Por mim, tudo a favor da tecnologia, a não ser a quantidade de fotografias que mostram tudo e não destacam quase nada.

Palavras nascem enquanto outras perdem o sentido. Um exemplo recente: o termo “inovação”. Na área de negócios é um daqueles clichês obrigatórios. Nas reuniões das empresas é colocado como objetivo. Em sala de aula virou um dos termos usados em qualquer expressão: um atendimento inovador, uma venda inovadora, uma vitrine inovadora no Natal. Virou sinônimo de bom, diferente, melhor. 

A própria literatura de negócios (?) classifica diversos tipos de inovação. Tentam colocar alguma ordem na morfologia da moda, definindo o que é uma inovação e o que também é, mas não tanto.

Inovação incremental, por exemplo, é aquela que não é bem uma inovação, sabe? Ela muda alguma coisa no produto e necessariamente deve (e aqui basta aplicar algum clichê) “agregar valor” ou “gerar vantagem competitiva”. Além disso, não pode ser apenas uma “melhoria contínua”. Tranquilo, né?

A inovação propriamente dita é então chamada de inovação radical. Aquela que desenvolve algo realmente novo, que gera uma ruptura, um recomeço. Uma imagem colorida na televisão. Um aparelho portátil que toca música aonde você for. Um telefone sem botões. Ou, aproveitando o tema do texto, uma câmera fotográfica que armazena milhares de fotos – e não utiliza filme.

Inovação, de fato, deveria ser algo que mudasse a vida das pessoas. E não apenas algo que as empresas consideram uma mudança. A banalização do termo banaliza o ato e, se bobear, todo o processo.

No entanto, se você escrever numa redação que o “selfie” é uma maneira inovadora de fotografar, vai tirar nota 10.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Carros na ponte e cachorros na neve

Em Florianópolis algumas lojas ainda fecham ao meio dia. Numa confraternização (perdão pelo eufemismo, leitor) em um bar da ilha, concordamos todos que isso é uma evidência inequívoca de que a capital ainda é uma cidade pequena. Tudo é lindo e faz sentido nas teorias que nascem na mesa do bar.

De fato estamos com pressa, e muitas vezes o tempo que temos para resolver problemas é ao meio-dia. Logo, causa um espanto moderno essa pausa comercial de duas horas para o almoço, bem no horário do... almoço.

(Em tempo: Floripa aparenta ser um mercado pequeno, restrito. Poucos clientes, pouca estrutura. Mesmo assim tem despertado certo encantamento externo. Será que a ilha está sendo superestimada? Ou a métrica do progresso é o trânsito caótico?)

Voltando aos intervalos: pesquisadores já descobriram que 4 horas é o limite do esforço contínuo. Isso se aplica a qualquer atividade profissional, como atletas de alta performance e, com certa variação, em cachorros que puxam trenós na neve: tradicionalmente, nas competições, eles corriam em torno de 12 horas e descansavam 12. Estudos mudaram a estratégia: quatro a seis horas de corrida, com intervalos de descanso da mesma duração.

Pesquisadores notaram que o momento de maior produtividade é quando você está compenetrado. E essa atenção total à tarefa não pode ser mantida o dia todo. Após quatro horas, é humanamente impossível manter o mesmo nível de rendimento.

Em um dos textos mais lidos do mês no blog da Harvard Business Review, o autor Daniel Goleman relata em detalhes esses estudos e lembra: o cérebro cansado apresenta sinais. Irritação, fadiga, distração e dispersão: de repente você percebe que está no Facebook, curtindo a vergonha alheia, quando deveria estar produzindo.

Se comercialmente fechar ao meio dia é um problema para o cliente (e eventual prejuízo financeiro para o empresário), mentalmente pode ser um alívio. Não é apenas qualidade de vida poder ir para casa, almoçar, brincar com o cachorro, dormir meia hora: é cientificamente comprovado que essa pausa melhora o rendimento, no caso, da tarde.

Quem sabe Floripa, ou o que restou de Desterro, deva preservar essa tradição de cidade pequena. O problema é atravessar a ponte, almoçar e voltar abrir a loja em uma hora e meia. A teoria de bar, na prática, também é outra.