sábado, 26 de junho de 2010

Notas do Tocantins

Você anda pela rua e vê dois cachorros grudados, pacientes, cada um olhando numa direção. Coisa que desde a longínqua infância você não via. Onde estão as crianças tentando separá-los com paulada e água fria?
Você vê crianças correndo (menos, claro, próximo aos cachorros amantes). Elas são sujas, magras e adoráveis. Você até pegaria uma no colo, mas teme ser confundido com o velho pedófilo que, por detrás da cortina, observa os meninos jogando futebol.
Você acorda no começo da noite, após poucos minutos de sono. Uma sensação ruim, um mal estar sem sentido, e você repete: calma rapazinho, a angústia do Graciliano era apenas o nó da gravata apertado. A sua é só a ressaca. Mas você pára para pensar e, opa, nem bebeu ontem.
Buscando amparo para a solidão você tenta reparar numa camareira. Procura um atrativo, uma curva ainda rija, alguma brancura proeminente, mas o que vê é um bicho qualquer implorando gratidão, igual a você.
Você passa por uma igreja de crentes, é segunda-feira a noite e uma dúzia de fiéis, no máximo, acompanha o louvor, que passa numa televisão, lembrando um karaokê. Você apressa o passo, espiando o recinto de soslaio. Um pouco a frente, um velho resmunga na varanda escura e você se assusta. Dormir, agora, só de luz acesa.
Você acorda então num dia ordinário e, no banho, olhando pela janelinha, vê um tucano deslumbrante planando. Ele muda toda a paisagem e, logo você, que nunca reparou nessas coisas, solta um involuntário “olha!”. Depois disso até uma árvore é contemplada: olhando pra cima, rente ao tronco, o sol batendo nas folhas e criando um inédito jogo de luzes. Primeira vez também que você repara nisso e se admira por ter encontrado tamanha graça.
Você vê então uma família fazendo um churrasco na varanda e você gostaria de ser convidado para estar ali, naquele momento. Logo você, bicho arredio. Um cachorro encantador aguarda paciente pelas sobras de carne e osso. Será que ele aceita um carinho enquanto come ou vai avançar?
Você anda desbravando as calçadas sujas e, num vão, vê um mongolóide sentado numa cadeira de rodas, a cabeça estranhamente deitada de lado sobre uma mesa e encostada num rádio de pilhas, apreciando a música que toca a todo volume. Não sei se a iniciativa é dele ou se é sua mãe que faz isso para que ele se ocupe e pare de estorvar. Por quem és, afinal, Senhor?
Você vê o de sempre. O que muda e aguça, aqui, tão longe, é a sua percepção. Pavorosamente clara, como a melodia que sai do rádio do mongolóide.
 
São Valério da Natividade, TO.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Ícaro dos pés rachados

A cada voo, a mesma e primordial emoção. Você pensa e até ouve de terceiros: voar acostuma! E o pior é perceber esses senhores dormindo em plena decolagem! Ignoram o momento em que o homem, mais de uma centena de homens, decidem ir contra sua condição histórica e retirar os pés do chão. Eu, por outro lado, acompanho atento: embalou o suficiente para subir? As casas, prédios e morros já estão distantes ou ainda são barreiras a eventual fraqueza do motor? Quanto tempo, Senhor, até estabilizar e a aeromoça trazer meu miserável lanche? Conceda-me um sorriso?

Eu não acostumo. Eu não gosto de altura, prefiro o rés-do-chão. Prefiro a sujeira, os ratos e as imortais baratinhas. Relevo nuvens e o firmamento: são demais para mim, não admiro essas coisas que ficam além da compreensão. Prefiro os perigos do solo, da estrada e suas curvas, dos rios, da chuva fria, da negra deitada na relva do potreiro. Prefiro as picuinhas da carne, as intrigas, as maledicências de quem está aqui, com uma pedra sempre ao alcance da mão.

Mas vai, Ícaro dos pés rachados. Feche os olhos. Pense na vida. Lembre que, haja o que houver, em alguns minutos tudo estará acabado. E até (ou se) recomeçar, você tem alguns dias de pés sujos no chão. Dias não menos assustadores. Mas tudo bem, desde que estejamos aqui, sentados, deitados, de cócoras, de qualquer jeito. Com terra debaixo das unhas. Nossa querida terra.

Exercitando Compaixão

Apesar do quarto novo e aconchegante, uma aranha foi preservada pela camareira relapsa. Imóvel à espreita, na quina sobre a porta do banheiro.

Hoje acordei e ao sair da cama quase pisei numa espécie estranha de inseto. Uma formiga com asas duras, do tamanho de uma mosca, ou um pouco maior. Nesse instante senti algo que sinto sempre que percebo uma aranha em sua teia: a vontade de servi-la.

Lancei a formiga-mosca e, na segunda tentativa, ela ficou presa nas teias. Imediatamente a aranha começou a envolvê-la numa espécie de casulo, do qual ela (a formiga-mosca) lutava incansavelmente para escapar. Acompanhei a disputa por alguns minutos, e como vi que a aranha em breve venceria, voltei para a cama.

Rolei por meia hora mas não dormi. Pensava em muita coisa, como de costume, mas em nenhum momento lembrei da disputa na teia, que fica num canto do quarto que não é visível da cama. Resignado, levantei, fui até o banheiro e olhei para cima: pasme, a formiga-mosca conseguiu escapar. Olhei para o chão e ela se arrastava, com um pedaço de teia preso em uma das patas. Compadecido, arranjei dois pequenos objetos e livrei-a das teias. Fiz com que ela subisse em um dos objetos, abri a janela e deixei que ela descesse. Lentamente, esmorecida, desapareceu.

*
Alguns minutos depois, no banho: pela pequena janela, vejo um morro, divido por uma cerca. Hoje, dois animais descansam sob uma arvore grande. Mas tanto hoje como também durante o banho de ontem, dois animais (parecem burros, jegues, mulas, dificilmente cavalos) ficam próximos, sob o sol das 11 horas.

Detalhe: um de cada lado da cerca. Ambos fazendo um movimento circular com o rabo, sem parar. Parece piegas, mesquinho, mas é a cena mais comovente que presencio em dias, talvez meses. Mais do que uma velha negra que vi há alguns dias: ela pescava onde o esgoto desembocava em um rio, em alguma cidade medonha do interior do Rio de Janeiro. Pois é, me sinto muito mais tocado pelo amor impossível dos eqüinos.

Creio que este relato perdeu seu rumo previsto. Desconfio também que este escriba não tenha um rumo definido. E por falar em rumos, Horácio, referindo-se às navegações, disse que o homem pode mudar de céus, mas não muda de espírito. É bem verdade. Mas creio que ele escreveu isso no aconchego do lar, e não no semi-aconchego de um hotel, onde moram aranhas e formigas-moscas. O espírito não muda, mas o aforismo ignora a avassaladora influência da distância e da saudade.  

Alegre, ES.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O primeiro 3D

Acho necessário traçar um paralelo entre a injustiça cometida contra o filme Avatar no Oscar 2010 e um sério mal dos nossos tempos: o “coitadismo”, a preferência cega pelo mais fraco, o supostamente desfavorecido. E até a academia se rendeu. Segue uma questão aparentemente isolada que resume o problema: por que premiar um colosso de 300, 400, 500 milhões de dólares, se um filme melhor foi feito com 10, 11 milhões?

Analisada superficialmente, a idéia até soa pertinente. Prova-se que não é necessário tanto dinheiro para produzir bons filmes. Nessa lógica, Guerra ao Terror venceu porque é uma história melhor, um filme redondinho, feito com orçamento modesto para os padrões de Hollywood. E assim os imbecis urram: a criatividade venceu o dinheiro da superprodução.

Esquecem que Avatar habitou a mente do diretor James Cameron por mais de uma década. Ele teve que inventar uma câmera mais leve para a tecnologia 3D acompanhar seqüencias de ação, caso contrário Avatar não sairia das idéias – ou, pelo menos, não da maneira que Cameron vislumbrou. Outro argumento falacioso: com tanto dinheiro fica fácil fazer um grande filme. Jura? E para levantar essa grana e depois investir tudo no imensurável da mente?

O ator e comentarista de cinema José Wilker falou, na transmissão da rede Globo, que o Oscar 2010 seria um divisor de águas para a indústria cinematográfica: caso Avatar ganhasse, os novos rumos seriam as superproduções, quem sabe sempre em 3D, a nova tendência. Caso contrário (e o contrário aconteceu) o cinema voltaria suas preocupações para bons roteiros, grandes atuações, histórias envolventes, etc.

Acho exagerada a preocupação de Wilker. Há lugar para todos em Hollywood (menos pra você). O sucesso dos blockbusters não depende da premiação da academia. Seu reconhecimento e sobrevivência dependem exclusivamente das bilheterias. O problema aqui levantado é não considerar a experiência deslumbrante que se tem ao se assistir Avatar em 3D. É ignorar todo o minucioso processo que o filme envolveu. É sapatear sobre o conceito de meritocracia, que deveria ser valor fundamental no Oscar.

Vejo nessa injustiça um duro golpe no pioneirismo, confundido com cinema de massa, com indústria cultural (ai, que enjoo). Resumo: a academia de cinema, ao invés de fugir do convencional ignorando Avatar, retrocede na análise dos méritos.

Concluo: ano passado tivemos excelentes filmes premiados. Esse ano tivemos um ótimo filme premiado. Ano que vem teremos outros. Mas um Avatar, ao mesmo tempo inocente e deslumbrante em 3D, nunca mais. Porque o primeiro 3D a gente nunca esquece(rá).