sexta-feira, 22 de abril de 2011

Como conheci Moacyr Scliar

Tornei-me leitor de Moacyr Scliar por acaso. Alguém me emprestou um de seus livros. Era um livro de contos, e na época achei bastante interessante. Depois disso li mais alguns, e eu até que gostava: eram daqueles textos que prendem o incauto leitor.
Um tempo depois, já na capital, fui a um evento que reuniu Moacyr Scliar e Carlos Heitor Cony. Ambos ostentando aquela arrogância que admiramos, bem característica dos escritores relativamente famosos. Scliar demonstrava uma pressa irritante. Queria antecipar o final do encontro de todo jeito. Respondia displicentemente perguntas de universitários afobados. Eu, e alegro-me com esta lembrança, permaneci calado.
“Quase-memória” foi um livro instigante na minha mocidade. “Romance sem palavras” permanece até hoje como um dos melhores finais de narrativa que já encontrei. Cony, enfim, marcou-me. E do Scliar o que ficou na lembrança? Um conto sem sentido que ele comentou durante o encontro.
Ele não lembrava exatamente da história. Mas era uma vez um cego que se gabava por conhecer qualquer veiculo a partir do ronco do motor. Mas errava todos. Quer dizer, errava porque o seu interlocutor lhe dizia que o carro não correspondia ao qual ele falava. Scliar concluiu lembrando que, certa vez, um estudante questionou-lhe se talvez não fosse o interlocutor que mentia, enquanto o cego acertava os palpites. Logo chego à intenção de Scliar com este exemplo.
Fiquei inquieto: eu lembrava bem deste conto, mais que o próprio escritor. Estava lá naquele livrinho emprestado da adolescência. Assim que acabou o encontro eu entrei na fila de autógrafos. Primeiro fui até o Cony. Cumprimentei-lhe, e ele estranhou que eu não tinha em mãos nenhum exemplar para que ele assinasse. Para este caipira, naquela época, aquele cumprimento representava bastante.
Depois fui ao final da fila de autógrafos do Scliar. Com as mãos no bolso aguardei paciente. Eu fui o ultimo, e quando ele me recebeu, estendi-lhe a mão, e imediatamente lembrei do conto que ele citou. E provei que o leitor que ele citou estava errado. Scliar deixou claro no texto que o cego não sabia do que falava. Scliar desconversou, visivelmente irritado por eu ter estragado seu exemplo sobre as diferentes visões que uma narrativa pode ter. Com aquele exemplo ele queria demonstrar como as vezes o próprio escritor não percebe interpretações diferentes da sua história.
Scliar achava interessante essa possibilidade de cada leitor interpretar um texto de determinada maneira. Pode ser, mas as vezes isso é resultado da preguiça. Falta ao escriba o labor da edição, da revisão; sobra afobação. E o que se considera interpretação múltipla pode ser apenas um texto afoito, carente de coesão. A boa prosa sempre foi exata, precisa.
Consegui estragar-lhe a noite ou não? Na época não foi minha intenção, queria que ele reconhecesse minha memória, reconhecesse em mim um bom leitor. Não deu muito certo, mas fui embora estranhamente contente. Queria apenas chegar em casa e contar para minha irmã o que aconteceu. O que hoje é uma lembrança apagada na época era algo extraordinário: argumentar com um escritor que eu admirava.
E hoje, alguns dias após a morte de Scliar, é o que tenho a contar. Li aqui e ali que foi reconhecido como grande escritor. Mas nunca mais li nada que ele escreveu, já que há tempos sou escravo de releituras exaustivas de Dalton Trevisan. Hoje entendo Scliar: se um leitor viesse comentar comigo entrelinhas, eu também desconversaria, olharia para ele com o mesmo desdém, e desejaria estar num lugar mais agradável, com bebidas e leitoras que apreciassem a arte das infinitas interpretações do texto afobado.