terça-feira, 26 de novembro de 2013

O passado justificado

Numa das últimas edições da revista Veja, a cantora Anitta lembra do passado humilde. A filha de uma costureira e de um vendedor de baterias de carro lembra que ganhava R$ 150 por show (hoje o cachê passa de R$ 100 mil). Diz ela: “Eu ia para os bailes com a minha mãe, no Peugeot 206 do meu pai. Mas o carro teve de ser devolvido por falta de pagamento”.

Há alguns dias minha mãe lembrou de algo que eu havia esquecido: quando criança, entreguei jornal e vendi picolé. Ela acredita que essa experiência possa ter contribuído na minha formação e trajetória profissional. Vejamos.

Entreguei uma ou duas edições do jornal. Tive que pedir ajuda ao meu primo para vencer a entrega. Lembro do chefe me flagrar com a bolsa de jornais jogada no chão enquanto admirava a enorme coleção de bolitas (bolas de gude) de um amigo. Essa coleção era lendária: uma bacia de lavar roupas cheia, impossível de ser erguida. Leiteira, olho-de-gato, listradinha, bolitão comum e paraguaio: para uma criança, o jornal se tornava irrelevante diante de tamanho tesouro.

Com os picolés não foi diferente. Lembro de ter tombado o carrinho num pátio de areia. Gostaria de lembrar do rosto do cliente ao receber um picolé sujo. Meu ponto era próximo à quadra de esportes da escola: dali podia observar as partidas na sombra de uma árvore. 

Hoje, na primeira oportunidade, como num jantar chique, posso omitir os fatos e, com um olhar distante, afirmar: “Minha infância não foi fácil. Vendi picolé e entreguei jornal. Minha mãe é testemunha.”  

É comum os famosos enaltecerem suas origens humildes. Como sofreram para chegar aonde chegaram. E nós, anônimos ou indigentes, repetimos a mesma ladainha: enfeitamos o passado para dar mais graça ao presente. 

Quem não sofreu teve tudo de mão-beijada, por isso chegou lá. Quem não chegou lá mas sofreu usa como desculpa para o fracasso atual as adversidades do passado. E quem não chegou lá, sofrendo ou não, reclama da falta de oportunidades.

O futuro chegou, e o que ele trouxe? Um passado cada vez mais distante, cheio de glórias e desculpas. Mais nada.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Qual é o seu limite?

No filme “Tudo pelo poder”, Stephen Myers (Ryan Gosling, sempre avassalador) faz as relações públicas da campanha eleitoral do governador Mike Morris (George Clooney). Num certo ponto da trama, o governador está no banco traseiro de um carro, conversando com sua esposa. Ela pergunta o motivo de ele não aceitar uma aliança com certo senador, o que lhe daria grande vantagem. E ele explica que várias vezes já cedeu e passou do limite que ele tinha estabelecido: limites éticos e morais. Aceitar tal aliança seria demais.

Imagine que os seus valores são um terreno cercado. Ali dentro está o seu código de conduta: até que ponto você pode ir para alcançar aquilo que você quer. Teoricamente, mentir, roubar e matar são coisas impensáveis, estão além da cerca, do limite que você estabeleceu.

Mas o poder e a ganância podem fazer você flexibilizar os seus limites. O resultado que você quer exige que você faça algo que você não gostaria que seus pais soubessem. O filme mostra isso: você começa a aceitar pequenas infrações, elas se tornam hábitos e, quando você percebe, desapareceu a tênue linha entre o certo e o errado.

Há muitos anos, em um mercado em Curitiba, vi um senhor devolver uma pequena quantia em dinheiro para o caixa. A quantidade era quase irrelevante, alguns centavos. Mas ele se justificou: “É assim que começa”. Começa o quê?, pensei na época. Hoje creio que ele não arriscava ultrapassar seus limites. Mesmo que só alguns milímetros.

Ser flexível é uma virtude? Nem sempre. Mudar de opinião é uma coisa. Condicionar valores e princípios aos interesses em jogo é outra. O problema é que é do ser humano justificar seus atos de acordo com a consequência, com o resultado obtido.

Um dos lados do seu cérebro está sempre justificando suas atitudes. É mentira que o notório corrupto chora sozinho à noite. Ele mesmo se ilude, releva, encontra culpados. O cérebro inquieto faz esse trabalho sujo enquanto o coração, maricas, permanece calado.

Millôr - Paz da classe média

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A educação dos cabelos

As brasileiras compram, em média, 15 frascos de xampu por ano. Elas dedicam 35 minutos diários arrumando o cabelo. O mercado desses produtos movimenta no país R$ 4,8 bilhões por ano. Esses e os demais dados do texto foram coletados em matéria da revista Veja.

Dificilmente o mercado de produtos para cabelo entrará em crise: os produtos tornaram-se uma necessidade básica. Na publicidade, o segmento já é o sexto maior anunciante, contando com garotas-propaganda como Gisele Bündchen, da Pantene, que recebe um cachê estimado em R$ 3 milhões. Cachê maior que o de Jennifer Lopes, da L’Oréal – aproximadamente USS 1 milhão. Além da boa grana, uma grande e lucrativa visibilidade: Gisele é disparada a mulher mais citada no Brasil como exemplo de beleza.

Estima-se também que as brasileiras coloquem mais xampu e condicionador nas mãos – mais do que o dobro que as europeias. Algo cultural, climático e, claro, relacionado ao tamanho dos fios.

Outro dado: 86% das mulheres brasileiras já usaram tintura nos cabelos. Segundo elas, um novo tom de coloração no cabelo aumenta a autoconfiança, dá sofisticação e melhora o humor.

Outro dado curioso, este da Revista Exame: o condicionador está presente em 91% dos lares brasileiros. Na Itália, em 50% das casas. Na França, só 35% dos lares possuem condicionador na janelinha do banheiro. 

O Brasil é o segundo mercado mundial em consumo de pós-xampus: os produtos usados após a lavagem. Novos processos, como o alisamento, demandam cuidados especiais. Logo, produtos de “manutenção” ganham mercado. Detalhe: mais da metade das mulheres brasileiras já fizeram algum tipo de alisamento.

E mais da metade das mulheres afirmam que deixam de sair se não tiverem tempo de arrumar os cabelos.

O Brasil ocupa a posição 85 no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) calculado pela ONU, logo atrás de Omã (84) e Azerbaijão (82). O índice mede a renda, a educação e a saúde dos habitantes de cada país. Já o Fórum Econômico Mundial classifica o Brasil na posição 88 no ranking de educação, logo atrás do Suriname (87) e da Bolívia (86).

Mas isso é outra história. Ou não?








terça-feira, 5 de novembro de 2013

O analfabeto moderno

O Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, mede os níveis de alfabetismo da população brasileira adulta. A definição do instituto para um analfabeto funcional é a seguinte: “É a pessoa que, mesmo sabendo ler e escrever frases simples, não possui as habilidades necessárias para satisfazer as demandas do seu dia-a-dia e se desenvolver pessoal e profissionalmente.”

O termo soa ofensivo. Parece algo distante, não adequado para pessoas que seguram um jornal nas mãos, se comunicam diariamente na internet e disparam opiniões sobre os mais variados temas.

Pois então: segundo o instituto, aproximadamente quatro em cada dez universitários brasileiros são analfabetos funcionais. Eles sabem ler, formar algumas frases, assinar o nome na prova. Mas não possuem capacidade aceitável de interpretação. Avaliar, relacionar, ponderar, julgar – todas tarefas que exigem esforço hercúleo do aluno. Calcular, só se o professor explicar exatamente como usar a fórmula.

O analfabeto funcional ignora as entrelinhas: a ironia passa despercebida e pode ser interpretada como uma ofensa. A metáfora perde o sentido e ele se pergunta: por que essa historinha para depois falar de política? Ele ignora todas as nuances que tornam a comunicação uma forma de arte.

Insiste-se para que os alunos leiam mais, mas fica a pergunta: será que eles sentem aversão ao texto porque são preguiçosos ou porque não entendem nada? É cruel: a criança vira adolescente e passa mais de uma década em sala de aula – e mesmo assim não consegue se comunicar direito. O que não for literal, para lembrar a adorável professora, “vai entrar por um ouvido e sair pelo outro”.

Desse modo a faculdade, que deveria formar profissionais, precisa ensiná-los a ler. Não são todos, mas é quase a metade! Em consequência disso, a graduação não pode exigir demais dos alunos. Para que todos aprendam, o ensino acaba sendo nivelado por baixo.


Esse efeito dominó vem da base. Suas consequências são sentidas de modo avassalador na economia e no mercado de trabalho. Uma pergunta para aqueles que tem uma visão de mundo limitada e singela: será que só aumentar o salário do professor resolve?