Há alguns dias minha mãe lembrou de algo que eu havia esquecido: quando criança, entreguei jornal e vendi picolé. Ela acredita que essa experiência possa ter contribuído na minha formação e trajetória profissional. Vejamos.
Entreguei uma ou duas edições do jornal. Tive que pedir ajuda ao meu primo para vencer a entrega. Lembro do chefe me flagrar com a bolsa de jornais jogada no chão enquanto admirava a enorme coleção de bolitas (bolas de gude) de um amigo. Essa coleção era lendária: uma bacia de lavar roupas cheia, impossível de ser erguida. Leiteira, olho-de-gato, listradinha, bolitão comum e paraguaio: para uma criança, o jornal se tornava irrelevante diante de tamanho tesouro.
Com os picolés não foi diferente. Lembro de ter tombado o carrinho num pátio de areia. Gostaria de lembrar do rosto do cliente ao receber um picolé sujo. Meu ponto era próximo à quadra de esportes da escola: dali podia observar as partidas na sombra de uma árvore.
Hoje, na primeira oportunidade, como num jantar chique, posso omitir os fatos e, com um olhar distante, afirmar: “Minha infância não foi fácil. Vendi picolé e entreguei jornal. Minha mãe é testemunha.”
É comum os famosos enaltecerem suas origens humildes. Como sofreram para chegar aonde chegaram. E nós, anônimos ou indigentes, repetimos a mesma ladainha: enfeitamos o passado para dar mais graça ao presente.
Quem não sofreu teve tudo de mão-beijada, por isso chegou lá. Quem não chegou lá mas sofreu usa como desculpa para o fracasso atual as adversidades do passado. E quem não chegou lá, sofrendo ou não, reclama da falta de oportunidades.
O futuro chegou, e o que ele trouxe? Um passado cada vez mais distante, cheio de glórias e desculpas. Mais nada.